Cancro. Uma pequena palavra que carrega uma grande ameaça. Consigo escrevê-la mas ainda não consigo dizê-la.
Mesmo já estando livre dela.
Uma vez disse-a mas baixinho, com medo que alguém a ouvisse. Ou que eu a ouvisse. Perguntaram-me se esta doença é a experiência transformadora de que tantos falam mas não sei se aprendi alguma coisa com ela. Sinto que falhei no teste.
Mas sobrevivi. Parece que a quimioterapia matou o bicho mas levou, também, com ela o pouco que tinha cá dentro. Devia ser pouco porque não sinto nada, só o vazio. E a solidão do vazio.
Sinto-me mais desligada agora do que me sentia antes ou durante o tratamento.
Depois da luta, os dias são ocupados pela dúvida e a única certeza é o que quero deixar para trás.
Falhei no teste?
Ninguém nos diz o que fazer quando acaba e o mundo espera que tenhamos a resposta para o sentido da vida.
Só quero paz. Paz e prazer e viver devagar. Viver com calma. Viver sem medo. Viver em paz com o ruído que me rodeia, ter um escudo invisível que não deixe entrar nada que me perturbe.
Tomar as rédeas da minha própria vida.
Tenho pensado em como o termo “lar” nunca foi um lugar de conforto e segurança para mim. Mesmo em adulta, os sítios que escolhi para viver foram uma fonte de ansiedade, de desconforto, de conflito, ruído, incerteza. Nunca me senti em casa em lado nenhum. Nunca me senti em casa com ninguém. Não me sinto em casa e preciso de me sentir em casa. É urgente.
O vazio acorda-me de vez em quando para me cobrar a atenção que não lhe tenho dado. Ando a fugir como posso e sempre que posso. Tento distrair-me com vida para fingir que está tudo bem, que me sinto bem e que a vida é este milagre que sempre ouvi dizer que era.
Li algures, depois de várias pesquisas sobre a vida após o cancro, que a melhor forma de lidar com o desconforto é confrontá-lo até que se torne confortável. Até que esteja confortável com o medo e a incerteza da doença.
O desconforto assalta-me de vez em quando. Aparece sem aviso. É a sensação de ser sugada pelo Espaço, para o Espaço, para o vazio, para o vácuo, para a escuridão, para o desconhecido sem segurança ou máscara de oxigénio.
Não é esta a solidão que eu abraçava antes. Não é esta a solidão que eu temia que me roubassem, aquela de que falava Nietzsche.
Esta solidão é outra. É outra coisa.
Estou desesperadamente à procura de um sentido, de sentir que há vida a viver depois disto, com a mesma esperança que havia antes. Que há coisas novas para experimentar e para aprender, emoções novas para sentir, amores para viver. E será que vou ter coragem para o fazer?
Esta nuvem que não desanda, que está pesada mas não descarrega…
Não há silêncio nem dentro da minha própria cabeça. Tenho mil cigarras dentro do meu ouvido.
Não há sossego que acalme esta inquietação.
Escrevo na esperança de que chegue a catarse.